Se eu fosse um passarinho ...
Na minha infância, o sono demorava a chegar e eu não conseguia dormir. Então, à luz de um pequeno abajur, eu lia e lia, até as letras
começarem a se embaralhar na página e eu começar a fazer “cabo de força” com os
meus olhos, que insistiam em querer fechar.
Adorava ler estórias e histórias, e viajava com elas.
Se eu fosse um passarinho ... A primeira vez que ouvi essa
frase, foi justamente nessa época, e me lembro que logo comecei a pensar o que
faria se eu fosse um passarinho.
Voaria alto, para ver tudo de cima – as
cidades, as ruas e estradas, os rios, as árvores, a mata, o mar ... E mais,
poderia talvez, ver tudo isso em um só dia, porque voaria rápido ou devagar,
conforme a minha vontade. Pousaria aqui e ali para descansar, bem alto, longe
dos perigos.
Poderia também, voar com as correntes de vento e ficar só
plainando como alguns pássaros, se deixando levar, sem rumo e sem esforço, para
qualquer lugar.
Passaria as noites em cima de alguma árvore, aninhada nas
mais alta folhagem, e dormiria sob a luz do luar e o brilho das estrelas. E, ao
amanhecer, acordaria com o primeiro raio de sol, pronta para continuar minha
viagem pelo mundo afora.
Se eu fosse um passarinho.... me lembro como se fosse hoje. Essa frase foi o
tema da redação final daquele ano escolar. E eu, sem pensar duas vezes, nos
meus nove anos de idade, dei assas à imaginação nessa viagem que me deixaria livre
para ir a qualquer lugar, porque afinal de contas, eu seria o próprio
passarinho da estória.
Então, voei como um passarinho, sem rumo e sem limites, livre
de tudo e de todos, pelo mundo afora para conhecer um pouquinho de cada lugar.
Desde então, esse episódio chega à
minha memória do nada, como que batendo à porta do meu inconsciente para me
lembrar: se eu fosse um passarinho ...
Houve momentos, em que eu tentei
analisar, assim como quem busca algum problema no assunto, ou mesmo um
significado para tamanha perseguição. Qual o sentido disso? O que o meu íntimo quer
dizer ao meu consciente? E por aí seguia nessa linha, querendo racionalizar de
alguma forma. É lógico que eu nunca cheguei à conclusão alguma.
Ainda bem, porque depois de algum
tempo, parei de buscar algum significado nisso tudo e, simplesmente, deixava
minha mente vagar nas lembranças desse episódio, que apesar de distante no
tempo, sempre conseguia visualizá-lo mentalmente em todos os detalhes.
Hoje entendo tudo isso. Essa viagem
imaginária da minha infância me encantou com tal intensidade, que a sensação
mágica provocada em mim nunca mais abandonou o meu ser.
Aos poucos, sem sentir ou planejar,
comecei a moldar o meu passarinho interior de hoje: os livros, o meu olhar e os
meus sentidos são as minhas asas para voar, para imaginar e para planejar os
meus trajetos, as minhas viagens.
Sim, porque hoje não voo com asas,
voo com a imaginação que me leva a lugares incríveis e às vezes, depois de
muito tempo gasto em alguns planos reais de voos, até consigo concretizar alguns
que a minha imaginação arquitetou.
Assim, hoje, o meu passarinho
interior não voa sobre as cidades, mas passeia por seus cantos e recantos, e caminha por suas ruas, avenidas, praças e parques.
Não voa sobre as trilhas e estradas, mas viaja por meio
delas e aprecia as paisagens do seu entorno.
Não voa sobre os rios e mares, mas
navega ou nada em suas águas.
Não voa sobre as árvores, mas
caminha em torno delas, namora a sua cor, a sua textura, se deslumbra com sua
riqueza e sente o prazer de abraçá-las.
Hoje, imaginação e realidade às
vezes se fundem no meu dia a dia. Continuo lendo estórias e histórias e, além
de continuar viajando por meio delas, tenho o hábito e o prazer de registrar em
estórias, momentos de minha própria história.
Foto: Alex Wigan / Unsplash
A sua participação é muito importante para melhorarmos este canal de comunicação ●
0 Comentários