Se eu fosse um passarinho ...

by - segunda-feira, janeiro 15, 2024

 



Na minha infância, o sono demorava a chegar e eu não conseguia dormir. Então, à luz de um pequeno abajur, eu lia e lia, até as letras começarem a se embaralhar na página e eu começar a fazer “cabo de força” com os meus olhos, que insistiam em querer fechar.  Adorava ler estórias e histórias, e viajava com elas.


Se eu fosse um passarinho ... A primeira vez que ouvi essa frase, foi justamente nessa época, e me lembro que logo comecei a pensar o que faria se eu fosse um passarinho.


Voaria alto, para ver tudo de cima – as cidades, as ruas e estradas, os rios, as árvores, a mata, o mar ... E mais, poderia talvez, ver tudo isso em um só dia, porque voaria rápido ou devagar, conforme a minha vontade. Pousaria aqui e ali para descansar, bem alto, longe dos perigos.


Poderia também, voar com as correntes de vento e ficar só plainando como alguns pássaros, se deixando levar, sem rumo e sem esforço, para qualquer lugar.


Passaria as noites em cima de alguma árvore, aninhada nas mais alta folhagem, e dormiria sob a luz do luar e o brilho das estrelas. E, ao amanhecer, acordaria com o primeiro raio de sol, pronta para continuar minha viagem pelo mundo afora.


Se eu fosse um passarinho....  me lembro como se fosse hoje. Essa frase foi o tema da redação final daquele ano escolar. E eu, sem pensar duas vezes, nos meus nove anos de idade, dei assas à imaginação nessa viagem que me deixaria livre para ir a qualquer lugar, porque afinal de contas, eu seria o próprio passarinho da estória.


Então, voei como um passarinho, sem rumo e sem limites, livre de tudo e de todos, pelo mundo afora para conhecer um pouquinho de cada lugar.


Desde então, esse episódio chega à minha memória do nada, como que batendo à porta do meu inconsciente para me lembrar: se eu fosse um passarinho ...


Houve momentos, em que eu tentei analisar, assim como quem busca algum problema no assunto, ou mesmo um significado para tamanha perseguição. Qual o sentido disso? O que o meu íntimo quer dizer ao meu consciente? E por aí seguia nessa linha, querendo racionalizar de alguma forma. É lógico que eu nunca cheguei à conclusão alguma.


Ainda bem, porque depois de algum tempo, parei de buscar algum significado nisso tudo e, simplesmente, deixava minha mente vagar nas lembranças desse episódio, que apesar de distante no tempo, sempre conseguia visualizá-lo mentalmente em todos os detalhes.


Hoje entendo tudo isso. Essa viagem imaginária da minha infância me encantou com tal intensidade, que a sensação mágica provocada em mim nunca mais abandonou o meu ser.


Aos poucos, sem sentir ou planejar, comecei a moldar o meu passarinho interior de hoje: os livros, o meu olhar e os meus sentidos são as minhas asas para voar, para imaginar e para planejar os meus trajetos, as minhas viagens.


Sim, porque hoje não voo com asas, voo com a imaginação que me leva a lugares incríveis e às vezes, depois de muito tempo gasto em alguns planos reais de voos, até consigo concretizar alguns que a minha imaginação arquitetou.


Assim, hoje, o meu passarinho interior não voa sobre as cidades, mas passeia por seus cantos e recantos, e caminha por suas ruas, avenidas, praças e parques.


Não voa sobre as trilhas e estradas, mas viaja por meio delas e aprecia as paisagens do seu entorno.


Não voa sobre os rios e mares, mas navega ou nada em suas águas.


Não voa sobre as árvores, mas caminha em torno delas, namora a sua cor, a sua textura, se deslumbra com sua riqueza e sente o prazer de abraçá-las.


Hoje, imaginação e realidade às vezes se fundem no meu dia a dia. Continuo lendo estórias e histórias e, além de continuar viajando por meio delas, tenho o hábito e o prazer de registrar em estórias, momentos de minha própria história.



Foto: Alex Wigan / Unsplash


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