Siga em frente
Domingo. O dia amanheceu nublado, anunciando chuva. Acordei cedo e logo me levantei. Não
conseguiria ficar mais tempo na cama. Estava um pouco ansiosa porque seria um
dia atípico, diferente de todos os demais.
Havia chegado o momento de deixar a cidade e partir para uma
nova fase de minha vida que eu começara a planejar dois atrás. Uma ideia, que
foi aos poucos, tomando forma, criando corpo e se fortalecendo dia após dia,
pois não via sentido algum em continuar ali.
Naquele domingo, eu estaria literalmente virando a chave da
vida para seguir de “mala leve”, e “leve”, em todos os sentidos. Vendi, doei,
ou passei adiante, tudo o que havia em minha casa e fiquei somente com o necessário que deveria caber em duas malas, nada mais.
Não que eu quisesse apagar lembranças ... Não, não era nada
disso! É que para mim, as lembranças ruins, devem ser esquecidas; já as
lembranças boas, estas certamente ficam na memória. E, se não permanecerem
vivas ao longo do tempo é porque não foram realmente marcantes.
Por falar em lembranças, sempre este assunto vem à tona,
logo me vem à mente um poema de Shakespeare que traduz exatamente o que eu
penso a respeito de lembranças: “conservar algo que faça eu recordar de ti
seria o mesmo que admitir que eu pudesse esquecer-te.”
Bom, voltando à “mala” ...
em casa, ficaram somente as duas malas e o colchonete no qual eu havia
dormido na noite anterior. E o café da manhã? Ah... este ficou para a padaria
do bairro.
Mas antes ir até lá, eu queria caminhar um pouco. Nos
últimos anos, especialmente aos domingos, a minha rotina matinal era fazer
longos e diferentes trajetos pelo bairro e redondezas.
Este era o momento de me conectar com o meu eu profundo, ouvir
a minha voz interior, planejar os passos seguintes e tomar as decisões. Era o
momento também de agradecer tudo e a todos ao meu redor e me conectar com o
Universo Divino.
Nestas manhãs, também me perguntei inúmeras vezes, se eu
estaria tomando o rumo errado. A resposta era imediata: não, ficar é que será a
loucura. Não havia razão alguma para permanecer e o meu sentimento era que, se eu
insistisse em ficar, por conforto ou por medo de tentar viver de maneira
diferente, isto sim, seria selar o meu fim.
Quando cheguei à padaria, depois da caminhada de despedida, ainda
estava cedo demais. As atendentes arrumavam as mesas na área externa, onde eu
gostava de me sentar quando dava aquela vontade de comer alguma coisa gostosa
com um cafezinho.
Enquanto terminavam a arrumação, fiz meu pedido no interior
da padaria que demoraria um pouquinho porque o café ainda não estava pronto.
Foi o tempo da área externa ficar liberada.
Sentei-me à mesa e enquanto esperava, inconscientemente,
comecei a fazer uma retrospectiva de meu tempo vivido na cidade. Foram muito
anos ali ... de trabalho, de conquistas, de lazer, família, filhos que cresceram
e tomaram o seu rumo próprio, amigos, muitas alegrias, tristezas, ganhos e
perdas ... e, sem pesar algum, havia chegado o dia de partir.
Não me dei conta de quanto tempo se passou - eu, ali,
sentada na padaria, vendo todo esse filme da minha vida. Absorta em meus pensamentos,
nem havia percebido que a garota havia chegado à mesa com o pedido. Deixou tudo
ali e havia também um bilhetinho.
Um pedacinho de papel azul claro, escrito à mão, com uma
letra que demonstrava cuidado e atenção na hora do escrever e apenas uma frase
e com uma moldura desenhada no entorno da mensagem assinada: “O seu dia começa
aqui com um bom café e sorriso no rosto - Neia.”
Terminado o café, pedi a conta à garota que me serviu. Não
resisti e perguntei: quem é Neia que escreveu o bilhete?
“Neia”, disse a garota, com um sorriso maroto, “é minha mãe.
Ela também trabalha aqui. Ela é quem escreve os bilhetes”.
Mas para mim, aquele não foi tão somente um bilhete para o dia.
No exato momento em que li a mensagem, meus olhos se encheram de lágrimas e me
senti quase que explodindo de emoção.
Uma alegria intensa invadiu meu coração. Era como se eu
estivesse recebendo a mensagem de um anjo me dizendo: “siga em frente”.
Foto: Karl-Cor/ Unsplash
0 Comentários